A correspondência de M. & W. #4
Essa newsletter pode ser lida separadamente, mas você pode conferir aqui os números publicados anteriormente.
Mapa da Europa de Abraham Ortelius com a ilha Brasil, 1591 [detalhe].
W., meu camarada,
Sentimos tanta saudade por aqui que é como se um oceano nos separasse. Sei que algum desavisado diria “mas um oceano de fato os separa” e nós - você com raiva e eu com ternura - talvez explicássemos a piada. A parte boa do banzo, se existe, está no surgimento dessas mensagens. “A correspondência”, escreveu o Piglia, “é um gênero perverso, tem necessidade de distância e ausência para prosperar.” À sua semelhança, releio o que escrevemos com frequência, os prósperos anais do teu exílio. Mas diferente de você, que não consegue distinguir o que sai do seu punho ou do meu, a mim tudo parece impessoal e distante, escrito por outras mãos que não as nossas. Me sinto violando cartas alheias. A correspondência de dois sujeitos obscuros absortos numa patriotada pedante.
Numa dessas releituras, percebi, há uma palavra não escrita por nós em nenhum momento e que, talvez por isso mesmo, se faz ler em cada linha. Um conceito chave, um postulado, uma palavra que é como a pia batismal do nosso país: Utopia. Minha mulher, que lê isto aqui por sobre meus ombros, me alertou para o anacronismo de escrever coisas como “pia batismal” e “por sobre meus ombros”, mas nós sabemos que já se escreveu coisa pior e mais desusada nessas missivas (missivas!). Nós somos viajantes do tempo. Escrevemos cartas como homens do século XIX, usando comunicação do século XIX, e maneirismos do século XIX. Sabemos bater o pó da estrada nas palavras que andaram por muito tempo ausentes. Dessa forma encontrei, entre essas palavras ausentes, essa palavra oculta: u-to-pia. Esse não-lugar, não-dito, encoberto pela grossa camada de poeira que você chama de pátria.
No mesmo livro do Piglia, por quem ando levemente obcecado, li que “O desterrado é o homem utópico por excelência, vive na constante nostalgia do futuro”. Sublinhei para te mandar depois. Veja se não está aí a sua perfeita descrição. Se não estão aí as tuas leituras de Zweig e essa tua bipolaridade vacilante entre o ufanismo de um Afonso Celso e o complexo de vira-latas Rodrigueano. O que vi do cosmonauta russo em você, meu camarada carijó, foi este desterro utópico. Porque se a dos soviéticos foi a última utopia, a nossa foi a primeira. A utopia brasileira é mais velha que o próprio Brasil. Ainda em 1325, o genovês Angelo Dalorto desenhava numa carta náutica os contornos de uma ilha mítica, um paraíso terrestre, país edênico, fértil e aprazível, livre da doença e da velhice. A sinalização destas terras afortunadas era um amálgama sincrético de antiquíssimas crenças pagãs na mitologia céltica da Irlanda. Uma tal ilha Hy-Brazil para a qual partiu São Brandão, santo navegador irlandês do século V, e de onde alguns etimólogos dizem que herdamos o nome do nosso país. Capistrano de Abreu escreveu que “Brasil” era “um nome à procura de aplicação”. Isto é, a promessa de viver sem lei, sem rei, sem fé, e sem roupa já existia. O que faltava era um lugar.
Minha hipótese, veja bem, é que o Brasil antes de ser avistado do mar, foi imaginado em terra firme. Uma terra utópica que já figurava nos mapas antes mesmo de ser encontrada, e não é mais (nem menos) real do que as serpentes marinhas e sereias que despontam nesses mesmos mapas. Aliás, a própria existência dessas criaturas em documentos precisos e cuidadosos como as cartas de navegação mostram como uma suposta percepção isenta da realidade anda lado a lado com a vontade de ver. É tão difícil para nós enxergar o Brasil porque ele já estava gravado na retina muito antes que a gente olhasse pra ele, pois são assim as imagens da imaginação: mesmo de olhos cerrados é possível vê-las. Inclusive, é mais fácil enxergá-lo se fecharmos os olhos. Se o fizer agora, saberás. “Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, que há de ser, que me dói o Brasil que é” disse certa vez o Darcy.
“Na Baixa do Sapateiro”, que é uma espécie samba-retrato de Salvador, foi composta por Ary Barroso trinta anos antes de que ele pudesse pisar pela primeira vez as suas pedras lisas. Mesmo para quem jamais abriu os olhos sob seu sol, nossa pátria, em alguma medida, mostra-se. A cidade do Salvador ainda seria a cidade de Dorival, Jorge, Verger, e Carybé. E a cidade de Dorival, Jorge, Verger, e Carybé, eventualmente, torna-se também a cidade do Salvador. Um registro circular em que o retrato e a coisa retratada confundem-se no rasgar do tempo. Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje atirou. Não é só sebastianismo, o velho ditado iorubá também ensina a temporalidade particular da nossa utopia como um indeclinável destino. Se a utopia é a carne da pátria, ser exilado, sei que algum desavisado diria “é ser expulso do paraíso” e nós - você com esperança e eu com ideações suicidas - talvez explicássemos que na verdade fomos expulsos do futuro.
O Piglia me ajudou a entender que você saltou de uma utopia para outra. Suas cartas são o diário de bordo dessa travessia, um relato de aclimatação da soteroformação de Paris. Até mesmo nessa emulação extemporânea do gênero epistolar, aqui está a utopia. De uma outra comunicação, de uma ficção em que somos o mesmo homem e que lemos as mesmas coisas, e de que somos viajantes do tempo, crononautas, usando arcaísmos para debater por diletantismo o futuro do país do futuro.
“…que é a utopia? É o lugar perfeito? Não, não é isso. Antes de mais nada, para mim, o exílio é a utopia. É um lugar que não existe. O desterro, o êxodo, um espaço suspenso no tempo, entre dois tempos. Temos as recordações que nos ficaram de nosso país, depois imaginamos como o país estará quando voltarmos. Esse tempo morto, entre passado e futuro, para mim é a utopia. Portanto: o exílio é a utopia (…) A correspondência em si mesma já é uma forma de utopia. Escrever uma carta é mandar uma mensagem para o futuro; falar a partir do presente com um destinatário que não se encontra ali, que não se sabe como estará (em que estado de espírito, com quem) enquanto lhe escrevemos e, principalmente, depois: ao ler-nos. A correspondência é a forma utópica da conversa, porque anula o presente e faz do futuro o único lugar possível do diálogo.”
Penso sempre em você meu amigo e, a seu próprio pedido, penso em você como Içá-Mirim. O venturoso carijó, o Ulysses piranga, primeiro civilizado da civilização brasileira entre os selvagens franceses. E penso ainda como é curioso que você tenha escolhido um personagem de história tão insólita como insígnia, essa história que é como uma pequena ilha de contos de fadas rodeada de horror por todos os lados. Uma excepcionalidade utópica, estranho episódio histórico envolvendo europeus e ameríndios que (ainda que termine com sabor agridoce), não descamba em tragédia total. Lévi-Strauss explica os termos gerais desses encontros nos Tristes Tropiques:
“Enquanto os brancos proclamavam que os índios eram animais, os segundos se contentavam com desconfiar que os primeiros eram deuses. Em igualdade de ignorância, o último procedimento era certamente mais digno de homens.”
Também falam qualquer coisa sobre dignidade as palavras do inglês Anthony Knivet: “prefiro colocar-me nas mãos da piedade bárbara dos índios do que na crueldade sanguinária dos portugueses.” Você escolheu o ponto exato da história em que as coisas não tinham ido todas à merda, onde ainda seria possível refundar a utopia de um encontro amistoso entre o velho e o novo mundo. A origem de um outro Brasil, à época em que seu desenvolvimento natural ainda era possível. Quando Pindorama era menos Eros, e a Europa menos Thanatos. O que você ignora é que esta tragédia é incontornável porque ela nos constitui. Se revertê-la em utopia é nossa raison d’être, sem ela não há o que reverter, portanto, não há nós. É o topos do nosso u-topos.
Nosso país nasce sob esse signo da utopia, do recomeço, e da liberdade. As viagens de navegação como uma espécie de provação final até o paraíso terrestre. Viver sem lei, sem rei, sem fé, e sem roupa, eu disse antes, mas sobretudo sem a vergonha do nu. Uma alteridade absoluta, distante, pura possibilidade, que ninguém sabe muito bem onde fica ou ficará, e levou Maiakovski a escrever: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Foi sob o entusiasmo da Lettera, a leitura das quatro viagens de Colombo, que Morus escreveu a sua clássica Utopia - o primeiro movimento de idealização do novo mundo como contraponto ao velho. Ora, meu camarada, não é exatamente este o nosso expediente? Aquilo que o Paulo Arantes escreveu na sua fratura brasileira do mundo: “Na hora histórica em que o país do futuro parece não ter mais futuro algum, somos apontados, para o mal ou para o bem, como o futuro do mundo”.
Nós tornamos o utópico e o selvagem indissociáveis, camarada Içá-Mirim. "Selvagens, com anel no nariz, tatuados de vermelho, dançando uma dança de escalpo sobre os escombros fumegantes da sociedade" escreveu o francês Théophile Gautier, sobre os communards de 1871 conseguindo, 150 anos antes de mim, aproximar as duas utopias (a comuna vermelha e a pindorama piranga) e honrar as duas em sua tentativa de ofensa. Termino esta carta com um pequeno oráculo, uma profecia pied-noir de quando Camus esteve no Brasil em 1949:
“O Brasil, com sua armadura moderna, como uma chapa metálica sobre este imenso continente de forças naturais e primitivas, me faz pensar num edifício, corroído cada vez mais de baixo para cima por traças invisíveis. Um dia, o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória”.
Eduardo Mafra - Fachadas do Comércio