A correspondência de M. & W. #5
"Os Maori, recentemente descobri, chamam os franceses de Wīwī. Wīwī! En raison de "oui, oui", mon camarade."
Essa newsletter pode ser lida separadamente, mas você pode conferir aqui os números publicados anteriormente.
Gravura de Théodore de Bry baseada nos relatos de Hans Staden, 1562.
M., meu camarada,
que leitor pode ser mais adequado para um escritor que não escreve do que aquele capaz de ler o que não foi escrito? Você é, inegavelmente, um leitor melhor do que eu jamais poderei ser escritor, e por isso há sempre uma distância generosa (ou uma generosidade distante) entre o que você lê e aquilo que eu de fato escrevi. Essa interpretação benevolente é como a distância que tomamos de um objeto para fotografá-lo. Uma distância que termina por revelar, mais e melhor, o que de perto nem sempre se vê. Não é por acaso que você me cita tantas vezes o Piglia, escritor enorme e leitor ainda maior, cujas leituras são, tantas vezes, melhores que os livros lidos.
De frente para a igreja de Saint Sulpice, vou dando passos para trás para fotografá-la, caminhando de costas em direção à fonte no lado oposto da praça. Quando enfim enquadro sua fachada magnífica e deixo a sua imponência circunscrita na pequena tela do celular, ela aparece em tudo diminuída. Ao contrário das suas cartas, minhas fotos são medíocres. Paris é uma cidade muito difícil de fotografar. Toda fotografia que eu faço aqui, percebo depois, eu já havia visto anteriormente noutro lugar. Nesse aspecto, as imagens daqui são como os imaginários do Brasil: sempre familiares, nunca originais. A dificuldade em evitar clichês é tanta que desisti de tentar e abdiquei da fotografia. Não faço uma foto sequer há meses. Essa correspondência será o registro mais nítido do meu desterro. Um manifesto contra a vulgaridade da imagem.
No fundo, eu sei, não há manifesto algum. Há apenas uma profunda incapacidade de exprimir. Nas fotografias sem assunto, nesses textos sem foco, e sobretudo nas privações que a imperícia com o idioma me impõe. Existe em mim uma vontade de silêncio que eu só posso atribuir ao afastamento da língua materna. Em português, a cabeça continua ebulindo, mas meus lábios só dizem "oui, oui", "non", "pardon". E evito a língua como se evita um passageiro tossindo no vagão do metrô. Me parece incrível que um dia eu tenha achado o francês uma língua bonita. Hoje sua sonoridade me parece repulsiva e, nas poucas vezes em que tenho domínio suficiente para verbalizar uma ideia, ainda prefiro a mudez. Falar mal uma língua estrangeira é uma experiência exaustiva de aceitação da incomunicabilidade e da própria incapacidade de vestir o mundo com a palavra e, principalmente, o tom desejado. Um exercício compulsório de contemplação e humildade que eu imagino ser semelhante ao voto de silêncio. Ironicamente, é dos franceses a expressão le mot juste, "a palavra exata", e o preço de procurá-la por tempo demais é o risco de nada dizer. Não surpreende que tenha sido conjurado nesta língua o "espírito da escadaria", l'esprit d'escalier, a entidade metafísica que nos descortina a réplica perfeita para encerrar uma discussão, mas somente quando já é tarde demais para usá-la, na escadaria, a caminho da saída.
Ah! se eles soubessem, meu camarada, o quanto posso enganar e soar inteligente em português! Aqui, não consigo pedir um guardanapo sem parecer hesitante. É humilhante dobrar-se à língua do colonizador. Ser obrigado a fazer metáforas infantis, reaprender a contar e nomear as cores. Tudo isso sob o mesmo olhar condescendente que um dia Crusoe dirigiu a Sexta-feira. Mas às vezes, é possível reagir. Os Maori, recentemente descobri, chamam os franceses de Wīwī. Wīwī! En raison de "oui, oui", mon camarade. Na ótima literatura que Pierre Verger deixou sobre cosmogonia e mitologia africana, Oxum é descrita, mais de uma vez, como "vaidosa e coquete". "Coquete", meu camarada! Um francês, mesmo renascido pelo Ifá, jamais se livra totalmente dos penduricalhos de sua língua materna.
Há um certo fascínio pela figura do jesuíta espanhol João de Azpilcueta Navarro pela sua facilidade em aprender a nossa língua geral e, em pouco tempo, rezar missas em "tupi". Os seus companheiros jesuítas usavam, para a conversão do gentio, os "línguas" - indígenas bilíngues capazes de fazer tradução simultânea. O traquejo e inteligência expressiva desses indígenas são muito menos festejados, é claro. Imagine, meu camarada, por um minuto, a riqueza das metáforas para falar da transubstanciação na língua de um povo antropófago. Um trecho de carta escrita por ele de próprio punho, em Salvador, a 1551:
"E porque Deus ainda não era servido, em amanhecendo, vendo que aquela gente não tinha discrição para vir tão cedo ao conhecimento da fé, nem estava disposta a isto, partimos para outra onde estava um principal dela determinado com toda gente a comer quantos brancos ali viessem a aportar. Contudo, pela misericórdia do Senhor, nos recebeu bem, e nos ouviu pelo língua a doutrina cristã, e mostravam ele e todos os demais folgar muito em ouví-la, mas não ousaram dizê-la por um feiticeiro os persuadir que com aquelas palavras lhes dávamos a morte, e que se o dissessem com suas bocas logo morreriam."
Gombrowicz, o polaco que Piglia me convenceu a ler, cruzou o Atlântico fugindo da guerra e perdeu seu idioma, tendo que reaprender a viver e a falar como nós. Algo como um refluxo histórico, um antípoda de Içá Mirim no breve século XX. Certa vez ele disse:
"Sou um forasteiro totalmente desconhecido, careço de autoridade e meu castelhano é uma criancinha que mal sabe falar. Não consigo fazer frases potentes, ou ágeis, ou elegantes, ou refinadas, mas quem sabe essa dieta forçada não acabe sendo boa para a saúde? Às vezes eu gostaria de mandar todos os escritores para o estrangeiro, para fora de seu próprio idioma e para fora de todo ornamento, de toda filigrana verbal, para ver o que sobra deles no fim."
De mim, sobrou muito pouco. Para esse mulato meio pernóstico, que construiu no estilo uma forma de estar no mundo, uma identidade, desentranhar-se assim da própria língua é uma pequena desgraça. Meu único consolo, meu camarada, é que esses bárbaros da autoproclamada civilização, tão ciosos do próprio idioma, embora tenham ensaiado fazer distinções entre o ser e o nada, nem mesmo aprenderam a diferenciar o ser do estar. De certa forma, sinto que vim à frança para aprender melhor o português. Decalcar o seu som ausente, rememorar uma expressão como se lembra de um gesto da mulher amada, xingar sonora e impunemente no meio da rua. Um homem distante de sua língua olha tudo com extrema lucidez. Mas (no meu caso pelo menos) a experiência é incomunicável. Em francês, silêncio. Em português, estas parcas linhas embotadas de “ufanismo crítico”. Mais um escritor pau-brasil exilado em Paris.
Há algo de perturbador na quantidade de esquinas que me levam de volta ao Brasil. Saindo do nosso apartamento minúsculo, são duas esquinas até a Rue Duguay-Trouin, o pirata francês que sequestrou o Rio de Janeiro e só não saqueou a cidade da Bahia por conta dos ventos insistentemente contrários que encontrou no caminho. Eparrei, Oyá, senhora dos ventos. Se encontro a bandeira napoleônica num museu, meus olhos estranham as cores erradas nas formas de nossa bandeira. A nossa primeira missa de Meirelles é um eco da Première Misse en Kabilie deles. E se por aqui nós chamamos os franceses de selvagens e louvamos a aventura civilizacional de pindorama, repetimos Montaigne cinco séculos atrasados. Quando Lévi-Strauss foi ao Brasil escrever os tristes trópicos fez uma espécie de mea culpa europeia, condenando o que ele chamou de "canibalismo nostálgico", uma espécie de saudosismo das grandes viagens e suas narrativas exotizantes. Penso se este meu oswaldismo não seria o anverso desse sentimento. Uma fantasia de encontrar o colonizador, abater-lhe com um tacape, ritualizá-lo, comê-lo. Pensei nisso ao tomar a saída 3 do metrô na estação de Saint-Germain-des-Prés, onde há uma pixação comovente na catraca, feita com piloto vermelho: "EAT THE RICH". Você leu como um oráculo, nas tripas do meu texto, a utopia. Sou um desses sujeitos que confiam cegamente no destino grandioso do Brasil, mas jamais falo disso publicamente para não ser confundido com um desses sujeitos que confiam cegamente no destino grandioso do brasil. Se você repetir essas palavras, eu as negarei e você passará por mentiroso.
Mas para que não se pense que eu estou aqui a concordar com um francês, uma última crítica. Na epígrafe que escolheu, Lévi-Strauss nos apresenta (com) o seguinte verso do De Rerum Natura: nec minus ergo ante haec quam tu cecidere cadentque ("Logo cairão, não menos que os de antes de ti já caíram") justo quando o verso seguinte é sic alid ex alio numquam desistet oriri (algo nunca deixará de nascer de outra coisa…1) tão mais espirituoso, brasileiro. O mau humor, meu camarada. O mau humor... A primeira palavra do livro é "Odeio". Ainda que a sentença completa seja "Odeio viagens e seus exploradores". Os exploradores franceses só pisam tranquilamente no Brasil em 1815, uma vez que nossos portos estavam fechados para eles, e tinham uma gigantesca imaginação represada. Taunay, que na França era miniaturista, no Brasil faz telas enormes. Uma espécie de descompasso estético Gulliveriano. "Peço licença por seis meses pois vou a um país que muito me inspirará", escreve ele para a academia francesa. Há uma certa graça contida nessa certeza. Já desponta aí a mesma confiança. No destino. Na utopia.
Já que músicas do Caetano se transformaram numa pequena tradição nossa, termino nu, com a música dele:
"Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor
(...)
Vislumbro certas coisas de onde estou."
tradução de Rodrigo Tadeu Gonçalves