fragmentos#1 - estradas
Quando dirigi pela primeira vez um automóvel, numa estrada traçada pelo meu avô, acelerei até os 100km/h. Lembro meu pai no banco do carona levemente pálido, e do meu pé enfiado no pedal forçando a panturrilha. O compósito de poder e relaxamento em comandar uma máquina pesada e veloz e o custo de extrema tensão e atenção envolvidos no ato me levaram a um nível de excitação tão extremo que, ao descer do carro, a sensação era de que eu já não sabia mais caminhar. “Se você se distrair dirigindo pela cidade você bate o carro. Se você se distrair na estrada você morre” meu pai disse, só depois que eu desliguei o motor.
"Um dia Eles chegaram. Sobre a estrada
Abriram à tardinha as persianas"
Aves de arribação - Castro Alves
Na estrada para Santanópolis, uma revoada de garças atravessou nosso horizonte por um instante, um momento apenas. Ainda pensei em perguntar “você viu, meu bem?”, mas não o fiz porque a mera possibilidade de que ela tenha perdido a beleza fugaz da cena já lhe punha um acento triste. E enquanto pensava nisso e noutras coisas fugidias ela me interrompeu dizendo “Olha! Você viu?” E eu respondi com um sorriso que sim, e me sentia mesmo muito satisfeito. Menos porque havíamos nós dois visto aquele pequeno milagre branco, e mais porque ela, no seu ímpeto resolvido, correu o risco diante da beleza e desafiou a possibilidade do meu não ver. Ali entendi que não há sensibilidade sem coragem. São duas garças brancas num vôo efêmero. E que eu até podia ser o mais sensível, mas ela tinha mais coragem que eu. Ali, na estrada para Santanópolis.
Viajando pela BR 242 vê-se muitíssimos quilômetros de nada antes de se ver qualquer coisa. Foi lá que foi tirada aquela fotografia minha sentado no asfalto, em que eu apareço de óculos escuros e um mundo de estrada vazia atrás de mim. Às vezes é possível rodar por meia hora sem topar com outro carro indo ou vindo e parece mesmo que tudo acaba por ali. Até a sanidade. É preciso tomar muito cuidado pois é sabido que a certa altura do seu percurso os olhos se invertem e passam a olhar para dentro. Um carreteiro uma vez me disse no posto trevo de Montes Claros que sempre via gente do seu passado no acostamento, mas que só resolveu parar de puxar carga de soja na região quando se deu conta que também via gente que só encontraria no futuro. A BR-242 também leva o nome de Milton Santos.
Quando eu era pequeno, um amigo de meus pais que eu chamava de tio dormiu enquanto dirigia e capotou o carro muito mais vezes do que as pessoas que saem ilesas costumam capotar. “Eu sonhei que estava acordado, dirigindo”.
“Se chama los caracoles” ela me diz enquanto eu procuro um freio imaginário no chão do ônibus. Estamos indo de Mendoza a Santiago cruzando os Andes pelo dorso de uma enorme serpente negra que os antigos chamavam de vertigem. Me dão para beber o que deve ser a pior ofensa ao café desde a queima do primeiro grão ancestral. O horizonte redunda e revolve no meu estômago. Penso na viagem vertiginosa do café serpenteando pelas minhas tripas.
A melhor metáfora para o distúrbio de ansiedade é imaginar um mundo em que tudo sucede à sua mente cinco minutos antes de suceder ao corpo. Para mim, o único método livre de psicoativos para dobrar o tempo e recalibrar os relógios é pegar a estrada. A estrada é o átimo eterno, a obrigação diligente e reativa de viver o instante por horas a fio. Assim como aqueles ascetas que mortificavam o corpo pela salvação do espírito, a estrada é uma mortificação do espírito pela salvação do corpo. A liberdade de perseguir o lusco-fusco uma linha tracejada por vez. “Se você se distrair na estrada você morre”. É o que acontece quando se está vivo.