fragmentos#2 - família
A casa de vovó não era grande, mas era comprida. O terreno era um corredor, mais longo que largo, uma faixa de terra que atravessava todo o quarteirão. Assim, quem entrasse pela porta da frente, na Rua dos Artistas, e se posicionasse bem ao centro do batente talvez pudesse enxergar, lá no fundo, um outro alguém entrando pelo portão da garagem, na Rua Coronel João Antonio.
Isso era possível porque os cômodos ficavam todos à esquerda: a antessala, os quartos, a sala de verdade, a cozinha, o banheiro, a área do quintal e a garagem.
Quando meu avô não estava, eu às vezes corria de uma ponta a outra o mais rápido que podia. Na ausência do avô podia-se fazer barulho, e na ausência do seu jipe segunda-guerra podia-se entrar na garagem a toda velocidade, saltando até o portão de ferro, que recebia a gente com um estrondo de fim do mundo.
A garagem era escura e tinha um cheiro estranho de couro envelhecido. Eu sentia medo quando passava muito tempo por lá e voltava correndo até a outra ponta da casa, mais iluminada e habitada, só para voltar à garagem sombria um minuto depois num exercício de enfrentamento do medo que desaprendi depois de adulto.
Antessala, quartos, sala de verdade, cozinha, banheiro, garagem, portão. Eram os países que eu andava. O familiar e o desconhecido. E se acabava o mundo ali, no estrondo do portão.
***
Aos sábados tinha feira. E as barracas da feira começavam a se ajuntar bem no fundo da casa de vovó. Ficavam próximas de tal forma que se o portão não se abrisse pra dentro não seria possível sair da garagem, e mesmo detrás do portão de ferro, no escuro, já dava pra sentir a agitação e os cheiros do mercado.
Quando vovó puxava o ferrolho e o portão pesado se movia, os olhos demoravam de sair da escuridão e se acostumar com o sol do sertão vibrando forte na lona colorida das barracas, na casca brilhosa das frutas, no sangue vivo da carne exposta.
Vovó me passava cinco reais e fazia um sinal de "xô!" com um gesto metade carinhoso metade impaciente. O portão fechava com um estrondo atrás de mim e eu amassava o dinheiro no bolso. Cheio de excitação e assombro no meio daquela gente que não era minha por inteiro. Minha infância era ser um menino do interior na cidade, e um menino da cidade no interior. Me tornei um adulto desterrado, ora perseguindo o som daquele ferrolho abrindo ora temendo o som daquele portão fechando.
***
Quando minha vó ia à feira, minha mãe contou, voltava sempre antes das onze. Não sei quais as habilidades envolvidas no controle da passagem do tempo numa feira. Às vezes se caminha até a exaustão e não se passam nem vinte minutos. Noutras você mal visitou as barracas de doce e já se passaram duas horas. O tempo e o espaço pregam peças o tempo inteiro, e eu não sei precisar quanto tempo eu passava ali entre as barracas.
Andava sentindo os cheiros todos (nem sempre agradáveis), comia de graça por ser neto de vovó, perguntava preço de coisas que não tinha intenção de comprar (nem teria dinheiro), comia peixe frito, limpava os dedos nas barracas de roupa, pedia uma uva pra experimentar e dizia que voltava mais tarde pra comprar. Tantas vezes voltei pra casa com o dinheiro no bolso. Meus primos me chamavam de mão de vaca. Eu respondia que "mais tarde eu compro alguma coisa" porque não sabia dizer que não sabia o que comprar. A feira pra mim era menos mercado e mais templo. Um templo de vendilhões, mas ainda um templo. Se a maneira de visitá-lo era com algum dinheiro no bolso, gastar era ter que ir embora.
Uma hora eu cansava, dava a volta (o arrodeio), e entrava pela porta da frente. Lembrava que ainda tinha os cinco reais e amassava a nota no bolso.
"Mão de vaca".
"Mais tarde eu compro alguma coisa".
***
Numa segunda-feira, morreu meu avô.
O telefone tremeu e, entre meia dúzia de alertas inúteis, uma mensagem de meu pai avisando a morte de seu pai. Me comoveu a exatidão telegráfica de suas palavras - contidas, contadas. A brevidade de quem é obrigado a dizer coisas vastas demais.
"Marco, o velho Pedro Alexandrino se foi."
"Hoje à tarde."
Fui comovido por essa precisão relatorial. Essa clareza anti-camusiana. Essa concisão lacônica de quem, para organizar o desarranjo dos efeitos, apela à transparência fútil dos fatos.
Me golpeou o sem-fim de não-ditos debilmente imobilizados nessa fina corrente de palavras, escritas como que ditas entre os dentes. Sei que os dois foram muito próximos até o dia em que não o foram mais, e que há anos tinham uma relação feita de silêncios antecipados e palavras tardias.
Não me telefonou, certamente por falta de confiança no domínio da própria voz. E quando o telefonei eu, passou muitos minutos monossilábico antes de, enfim, falar longamente. Meu avô morto, pai de meu pai, é para mim um mistério tripartido: uma memória, um relato, e uma fotografia.
Uma memória porque, criança, tenho uma única lembrança de visita sua à nossa casa. Eu testava meus patins novos que, de troça, ele chamava "patinhos" e fingia se espantar com o quanto eram perigosos. Tomei impulso e, meio desequilibrado, fui deslizando para longe. Nunca mais o vi.
Um relato porque, adolescente, vim a conhecer pelos outros minúcias incríveis de um homem que eu não sabia o tom de voz. Sei que, dibético, gostava de Guaraná Antartica (que chamava de guaraná champagne) e que, viciado em trabalho, nem lavava os olhos antes de partir pra lida - o chamavam Pedro Doido.
Uma fotografia porque, adulto, recebi uma imagem sua que me perturbou profundamente. Me surpreendeu não conhecer uma face que reconheço. A semelhança óbvia de nossos traços, a mesma vagueza no olhar, e até os mesmos redemoinhos selvagens a governar nossos cabelos.
Eu que jamais quis dizer "vinho da mesma pipa!", surpreso, me perguntei que outras semelhanças poderíamos ter? Só consegui pensar nesses nossos nomes pomposos, demi-romanos e quasi-cômicos, assim, posto no documento de dois fudidos. E, é claro, o sobrenome tétrico: Cruz.
Sei que ele não conheceu pai, que estudou a custo, que serviu às forças armadas, e que trabalhou duro para constituir uma família (e a certa altura da vida, duas). Morreu numa segunda-feira deixando (no mínimo) um filho saudoso e (no mínimo) um neto confuso.
Aquietou-se um mistério. Morreu meu avô e sua ausência encontra, enfim, uma justificação material. Fica o que sempre existiu. Uma memória, um relato, e uma fotografia.