A correspondência de M. & W. #1
"Padeço desgraçadamente de uma brasilidade em metástase. Nunca penso em voltar, mas em certo sentido jamais parti."
Mesa de cabeceira de Zweig [detalhe] - The LIFE Picture Collection (1942)
M., meu camarada,
comecei a ler o seu e-mail logo depois de acordar, provavelmente ao mesmo tempo em que vocês também despertavam em Salvador. Calculo que já não há qualquer diferença de fuso entre nós, pois levanto ao meio-dia e só me deito bem depois das três da manhã. É inverno, e o sol daqui é uma lâmpada de geladeira que se apaga às 17h. Anêmico e moroso. O anoitecer chega cedo, mas o sono só me encontra alta madrugada. Pelo menos sou absolvido das manhãs de janeiro - frias demais, escuras demais. Estou culpando o inverno, mas é possível que esses horários excêntricos tenham uma explicação menos determinista e mais sentimental: penso que cumpro essa rotina desajustada porque assim me sinto mais próximo do Brasil.
Passo os dias cultivando, como um bonsai, esse jet lag artificial. Padeço desgraçadamente de uma brasilidade em metástase. Nunca penso em voltar, mas em certo sentido jamais parti. Leio notícias de Brasília compulsivamente. Ouço João Gilberto quase que exclusivamente. Reli Jorge Amado e, pior, achei muito bom. Compro cafés de qualidade duvidosa no mercado apenas porque lê-se "brésil" no rótulo e, mesmo assim em grafia e pronúncia medonhas, a palavra me faz sorrir. Semana passada cheguei mesmo ao ridículo de assistir ao Jornal Nacional pela internet. Frequento um bar, demasiado distante e caro, somente porque servem aipim frito. E, é claro, acordo ao meio-dia porque é manhã no meu país.
É como se eu pudesse cultivar no corpo em desacordo, um espírito em acordo. Acordo com o quê? Não sei. Talvez seja só um truque de mágica, um engenhoso jogo de espelhos em que o público acredita ver o ilusionista almoçar em Paris enquanto, na verdade, ele toma café da manhã em Salvador. Ou talvez, meu amigo, eu esteja mesmo habitando simultaneamente duas cidades numa realidade bipartida, e possa atravessar o Atlântico e retornar usando apenas a força do hábito e o bom manejo do relógio - estranho navegante, estranhos instrumentos. Li certa vez que Cortázar decidiu escrever "O jogo da amarelinha" após um sonho em que abria as janelas do seu apartamento em Paris, mas a vista dava para uma rua em Buenos Aires. Seria possível dobrar o espaço, assim como dobramos um mapa?
Foi Bakhtin quem escreveu que os indícios do tempo encontram-se no espaço, e que para nós o espaço é percebido de acordo com o tempo. Cronotopo. Para mim, só um exilado poderia pôr de pé um conceito como este. Porque todo exílio, meu amigo, é também uma viagem no tempo. Sinto que daqui poderia enviar cartas a um futuro eu, receber mensagens de um eu passado, mas delas não poderia aprender nada, pois no momento da entrega destinatário e remetente seriam rigorosamente os mesmos.
Veja bem, não quero me tornar excessivamente lírico aqui. Essa irritantemente propagandeada experiência das viagens, reveladora e quase espiritual, é muitas vezes a experiência de redescobrir o interesse em tudo aquilo que era cotidiano e familiar. Uma renovação da fé nos santos de casa e nos seus milagres. Pois uma das maneiras de aprender o que nos é desconhecido, é apreender melhor aquilo que já era conhecido. Caminho por Paris e tudo que vejo são as coisas em que ela é muito similar ou muito diferente de Salvador. Para mim é como se não observasse uma, mas duas cidades sobrepostas, uma fotografia de dupla exposição.
Talvez seja isso que Cortazar quis dizer com “Em Paris tudo era Buenos Aires, e vice-versa”. Mas eu falo de uma outra coisa aqui. Falo desta confusão que é ver passado, presente e futuro, sobrepostos num palimpsesto de cidades. Falo da nostalgia que é espiar esse caleidoscópio de memórias e acompanhar imóvel, como um sol pálido e moroso, esse vertiginoso carrossel girar ao meu redor. Falo da intersecção, desse espaço entre o cosmopolitismo provinciano de Paris e o provincianismo cosmopolita de Salvador, onde estacionei a minha nau. "Eu sou uma pobre exilada. Você não imagina como longe do Brasil se tem saudade dele. Sou capaz de escrever um novo 'Brasil, país do futuro'...” - escreveu Clarice Lispector numa carta às suas irmãs.
Encontrei, num canto particularmente quieto do Jardim de Luxemburgo, um busto de Stefan Zweig, o autor do livro que a Clarice queria reescrever à la Pierre Menard. Zweig foi uma estrela do meu gênero literário favorito que é o relato de viagem ao Brasil escrito por europeus tristes. Depois de topar com esse trecho da correspondência de Clarice, comecei a lê-lo nas visitas à lavanderia. É muito instrutivo ler o que estrangeiros escrevem sobre o seu país enquanto se observa estrangeiros lavarem roupa. Ajuda a manter os pés no chão, não levar nada muito a sério. "Brasil, país do futuro. Sempre." ironizou o Millor Fernandes.
Zweig era um fenômeno editorial, e o livro saiu simultaneamente em pelo menos seis idiomas e fez muito sucesso no Brasil à época. O título, aliás, se transformou numa espécie de epíteto ambivalente sobre o nosso devir. Nós sempre ficamos fascinados, lisonjeadíssimos, quando despertamos o interesse dos europeus. Nos parece incrível que alguém goste de nós. Fomos (e ainda somos) uma nação que importa amor próprio.
Ao país do futuro contrapõe-se "O mundo de ontem", um livro nostálgico em que ele relembra as delícias da Europa antes da guerra, uma elegia do velho continente. Esse eu não li, nem lerei. Veja, meu amigo, ele tenta olhar o país com honestidade, mas seus olhos estão viciados. Estamos falando de um pobre sujeito, um judeu austríaco fugindo dos nazistas, que acreditava que o nosso destino de brasileiros era salvar a civilização, ou ao menos a civilidade.
A formação do nosso país aparece como uma mítica aventura lusitana na qual negros e indígenas são uma inconsistência inconveniente. Como não encontrou o racismo europeu, deduz que não somos racistas (faz isso com mais beleza e dignidade que o Ali Kamel, que não tem a desculpa de ser estrangeiro, nem de ser nascido no sec XIX). Lamenta ou exalta a nossa geografia ao passo que ela difere ou assemelha-se da geografia europeia.
Ainda assim, é muito prazeroso lê-lo, porque um europeu que acha que temos qualquer coisa a ensinar ao mundo é uma vitória pequena, mas dupla, sobre o vira-latismo e sobre o colonialismo. É um livro escrito pela pena de um exilado, e com olhos de exilado. Também ele enxergava os países intertravados, um por cima do outro. Também ele confundia a nostalgia do passado europeu com a esperança no futuro brasileiro. Também ele sentia-se irremediavelmente perdido.
Abaixo do busto de Zweig no jardim há um livro esculpido em bronze, que traz uma inscrição com o registro de seu nascimento e morte. Vienne 1881, Petrópolis 1942. Suicidou-se no Rio, seis meses depois de finalizar o livro. Os jornais publicaram sua carta de despedida:
"Antes de deixar a vida, de livre vontade e juízo perfeito, uma última obrigação se me impõe: agradecer do mais íntimo a este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou a mim e à minha obra tão boa e hospitaleira guarida. A cada dia fui aprendendo a amar mais e mais este país, e em nenhum outro lugar eu poderia ter reconstruído por completo a minha vida, justo quando o mundo de minha própria língua se acabou para mim e meu lar espiritual, a Europa, se autoaniquila.
Mas depois dos sessenta anos precisa-se de forças descomunais para começar tudo de novo. E as minhas se exauriram nestes longos anos de errância sem pátria. Assim, achei melhor encerrar, no devido tempo e de cabeça erguida, uma vida que sempre teve no trabalho intelectual a mais pura alegria, e na liberdade pessoal, o bem mais precioso sobre a terra.
Saúdo todos os meus amigos! Que ainda possam ver a aurora após a longa noite! Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes."
M., meu camarada, como é duro ver do exílio o seu país natal sendo destruído. Penso frequentemente nessa carta de despedida, desde que a li. Nesse homem que encontrou nosso país e perdeu as esperanças no dele. Que se matou em terras estrangeiras. Penso nas suas fotos, morto ao lado da mulher, que, é claro, o jornais publicaram. Deitados na cama, parecem dormir profundamente, as mãos entrelaçadas. Ao lado, uma banqueta com água, veneno, e fósforos Guarany. Fósforos Guarany, M.! Aos meus olhos de detetive bastaram esse detalhe para afirmar: este homem homem morreu no Brasil. Causa mortis: Brésil.
Penso nessa contradição de manter uma fé inquebrantável no futuro, ao mesmo tempo em que se é consumido por um apego indisfarçável pelo passado. Esta certeza de que o mundo continuará, mas que já não se pode viver nele. O passado e o futuro, meu amigo, são tempos míticos. O tempo dos grandes homens e suas realizações. Nosso presente, entretanto, é o reino do comezinho. Ainda que se seja contemporâneo de Hitler ou do Nazareno. Por sorte, nós, brasileiros, sabemos que nossas cidades foram erguidas para ser destruídas, e que tudo parece que era ainda construção e já é ruína. Isso só para ficar em duas músicas do Caetano. É preciso ter paciência, paciência infinita. E forças descomunais. Mas começaremos tudo de novo, e veremos a aurora dessa longa noite. Promessa. Brasil, país do futuro. Sempre.
Gustave Caillebotte - Vue prise à travers un balcon (1880)