A correspondência de M. & W #2
"Talvez só seja possível amar esse país de longe. Deixar o Brasil, o ato supremo de amor à pátria."
Não deixe de ler o número anterior desta newsletter A correspondência de M. & W #1
Krikalev emerge da cápsula de reentrada Soyuz em (1992) TASS/Sovfoto/Eastfoto
W., meu camarada,
agora mesmo, enquanto escrevo, há homens planejando a terraformação do planeta Marte. Essa é uma era de maravilhas e não me espantaram nem um pouco os seus experimentos com o tempo e o espaço para a soteroformação de Paris. Em breve, meu amigo, você não só será capaz de sintetizar manhãs brasileiras a 6°C, mas também acordará praguejando, empapado em suor. E seus vizinhos se assombrarão quando, alta noite, um cheiro de dendê borbulhando no tacho quente devastar o arrondissement. O exilado é um viajante no tempo, você disse. Eu acrescento que é também um cosmonauta. Imagino você como Taylor no planeta dos macacos, um Charlton Heston moreno, descobrindo as ruínas do Elevador Lacerda na rive gauche deserta. Como os chimpanzés andam te tratando por aí, meu amigo? Eles já sabem que você pode falar? Também imagino você como um Sergei Krikalev, o soviético que estava no espaço quando a cortina de ferro caiu e, embora tenha retornado ao planeta, jamais tenha retornado ao seu mundo. Não há mais EUA, Taylor. Não há mais URSS, Krikalev. Não há mais Brasil, W.
Se há futuro para nós, seria bom que ele se apressasse. Agostinho da Silva disse que não há abismo em que o Brasil caiba, mas deus é testemunha do quanto nós temos cavado para contrariar esse português. Acho que foi o filho da puta do Gobineau quem disse que os brasileiros estaríamos extintos em 200 anos, já completamente degenerados pela mistura de raças, a mesma mistura de raças na qual o Zweig apostou o nosso futuro. Me divirto com o fato de que os dois erraram: um pelo seu racismo otimista, o outro pelo seu otimismo racista. Para o bem ou para o mal, estamos sempre a contrariar oráculos... Mas Gobineau não errou todas. Certa vez escreveu sarcasticamente para sua mulher: "o brasileiro é um homem que deseja apaixonadamente morar em Paris". Me diga, meu amigo, por que voamos como mariposas ao redor da cidade-luz? Porque saímos a flanar pelos boulevards rasgados por Haussmann e encontramos tantas e tantas vezes retalhos do Brasil? Não o diz apenas esse colaboracionista de Vichy avant la lettre. Há uma carta bonita do Cortázar a Amparo Dávila, sudacas, como nosotros, em que ele diz que "Paris exaspera todas as potências quando se entra em sua rosa negra; e os sul-americanos subdesenvolvidos e ressentidos e com complexos de inferioridade cultural, sentem que ali podem ter uma experiência libertadora...".
Não deixa de ser ilustrativo esse teu reencontro com o Brasil e a brasilidade. Se somos uma nação que importa amor próprio, você deve concordar comigo que somos também uma nação que exporta ufanismo. Talvez só seja possível amar esse país de longe. Deixar o Brasil, o ato supremo de amor à pátria. Me divirto com a francofilia de Brasília. Parece que os primeiros efeitos dos teus experimentos no tempo-espaço já se fazem sentir: Paris se converteu numa espécie de destino tragicômico da nossa política (e dos nossos políticos). Primeiro com a partida do Ciro, atirando-nos seus sapatos para não levar nem o pó do primeiro turno. Depois com o Lula recebendo um título de cidadão honorário da cidade ao sair da prisão. Para os que permanecem aqui, no país do futuro, o que resta é mal remediar o passado e dilatar esse eterno presente no qual nada é, para que tudo possa sempre vir a ser. O Brasil é maravilhoso, sim. Mas é maravilhoso na mesma medida em que são sempre maravilhosos os poemas que não escrevemos. No momento em que começamos a enfileirar os versos, estamos já condenados aos versos que enfileiramos.
Meu caro exilado, Proust escreveu que todo leitor é um leitor de si mesmo, mas poderíamos estender suas palavras para dizer que todo exilado exila-se sempre em sua terra natal. Mais ou menos como Calvino imaginou Marco Polo descrevendo todas aquelas cidades a Kublai Kahn, em todas elas uma Veneza diferente. "Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza (...) Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita (...)" Será isso o que você quer dizer quando me fala num palimpsesto de cidades? Pois veja como se sobrepõe a nossa Salvador-Paris. Poucos dias após a leitura do teu último e-mail, estava caminhando pela vizinhança e descobri uma efígie de Zweig no coração do porto da Barra, quase em frente ao Forte de Santa Maria. Fiquei uns minutos sob o sol, admirando a placa de bronze, e fui acometido do estranhíssimo pensamento (mais que isso, da sensação) de que éramos o mesmo homem habitando duas cidades distintas, tendo o mesmo encontro fortuito com o mesmo escritor. Fiquei tão perturbado que ao voltar para casa decidi abrir o livro de Zweig. Não lembrava que ele visitara Salvador.
Com essa cidade teve início o Brasil e, com direito podemos dizê-lo, a América do Sul. Nessa cidade levantou-se o primeiro pilar da grande ponte lançada sobre o Atlântico, nela originou-se de matéria europeia, africana e americana a mistura nova que ainda fermenta eficazmente. Veneremos, pois, a Bahia antes de a admirarmos! Essa cidade tem a prerrogativa de ancianidade entre todas as da América do Sul. Com seus quase quatrocentos anos, com suas igrejas, sua catedral e seus castelos, a Bahia é para o Novo Mundo o que para nós europeus são as metrópoles milenárias, o que para nós são Atenas, Alexandria e Jerusalém: um santuário da civilização. E, como ante uma fisionomia humana, sentimos respeitosamente diante dessa cidade que ela tem uma história, um passado glorioso.
A atitude da Bahia é a de uma rainha viúva, de uma rainha viúva grandiosa como as das peças de Shakespeare. A Bahia está presa ao passado. Há muito tempo que entregou o régio poder a uma geração mais nova e sôfrega. Todavia não abdicou, conservou sua posição e, com esta, uma incomparável dignidade. Altiva e ereta olha do alto para o mar, no qual, séculos atrás, todos os navios se dirigiam para ela; ainda traz os antigos adereços, constituídos por suas igrejas e sua catedral, e essa dignidade de atitude continua a existir na sua população. Podem as cidades mais novas, podem o Rio, Montevidéu, Santiago, Buenos Aires ser hoje mais ricas, mais poderosas, mais modernas, mas a Bahia tem sua história, sua civilização própria, seu modo de vida próprio. De todas as cidades do Brasil foi ela a que mais fielmente respeitou a tradição. Só pelas suas pedras e ruas se compreende a História do Brasil, só essa cidade nos permite compreender como de Portugal nasceu o Brasil.
(...)
Por toda a parte nessa cidade sentimos a tradição. A Bahia, ao contrário de todas as outras cidades brasileiras, possui um traje próprio, uma cozinha própria e uma cor própria. Em nenhuma outra parte as ruas mostram tanta variedade de cores como na Bahia, onde a população africana e a colonial antiga se conservaram sem grande modificação; sem cessar julgo estar vendo, como quadros vivos, as cenas do “Brasil pittoresque” de Debret, todas aquelas coisas de outrora que já há muito tempo desapareceram das outras cidades grandes. É verdade que automóveis percorrem as ruas da Bahia, mas na cidade velha muares com cangalhas ainda carregam frutas e lenha; nessa cidade ainda podem alugar-se burros por hora, como se alugam automóveis numa cidade moderna, e no porto a carga, como nos tempos dos fenícios e dos romanos, não é embarcada por meio de guindastes, é transportada para bordo às costas de carregadores. (...) No permanente pitoresco o que há de mais pitoresco são as baianas, as pretas gordas, de olhos escuros, com seu vestuário especial. Esse vestuário, as baianas, mesmo as mais pobres, usam-no sempre, todos os dias, e não podemos imaginar outro mais pomposo. Não é comparável com nenhum outro, não é africano, não é oriental, não é português, mas sim, os três ao mesmo tempo. (...) Mas a imponência dessas baianas propriamente não está no traje, está no garbo com que o usam, no seu modo de andar, nas suas maneiras. Sentadas no mercado ou na soleira duma porta, dispõem elas a sua saia como se fosse um manto real, de modo que parecem estar sentadas dentro duma enorme flor. Nessa atitude imponente, vendem essas princesas de cor as mercadorias mais baratas deste mundo, iguarias gordurosas ou condimentadas que preparam num fogareiro de carvão, iguarias tão baratas que uma folha de papel seria muito cara para nela as embrulharem. As iguarias são entregues aos fregueses em pedaços de folha de bananeira.
Incrível, não? “O julgamento dos estrangeiros é um pouco como o julgamento da posteridade” escreveu Bourdieu, antecipando esses teus estudos sobre o tempo-espaço. Difícil discordar. Olhando daqui, do país do futuro, não é preciso fazer qualquer esforço para ver essa mesma cidade da Bahia que Zweig viu no século passado. Basta olhar, sob o sol correto, quase em frente ao Forte de Santa Maria, a Vila do Pereira, vila velha, o coito do brasil, a costa da primeira aldeia eurotupinambá do mundo (como diria o Risério) lavada e lavrada em sangue negro (como diria melhor, o Darcy). Se esta cidade não se despedaçou nos últimos séculos, porque razão haveria de sumir agora? Se eu pudesse citar a coisa mais triste de ser brasileiro, seria essa incapacidade de perder a esperança. Tudo vai mal. Tudo, tudo, tudo, tudo. Tudo mudou, não me iludo, e contudo a mesma porta sem trinco, o mesmo teto, o mesmo teto, e a mesma lua a furar nosso zinco, para também ficar numa música do Caetano. Brasil, país do futuro. Sempre.
Carybé - Vadiação (1965)