A correspondência de M. & W. #3
Já nem sei dizer qual de nós sente mais saudade do Brasil. Se o país se nos apresenta como a linha do horizonte, uma miragem fugidia, estamos os dois sempre muito longe dele onde quer que estejamos.
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A correspondência de M. & W. #1
A correspondência de M. & W. #2
Pierre Verger - Autorretrato (1937)
M., meu camarada,
pela janela do restaurante posso enxergar La Closerie des Lilas do outro lado da rua. Todos os dias, quando venho almoçar, penso no velho Hemingway sentado ali, faminto, escrevendo com disciplina aos pés da estátua do marechal Ney. Eu, em tudo oposto, sigo bem alimentado, sob a sombra indisciplinada do menino Ney, e não escrevendo nada. Reli uma porção de vezes o seu último e-mail. Reli também, narcisicamente, o que te escrevi e fiquei um pouco espantado com o quanto as palavras parecem todas saídas do mesmo punho. Já nem sei dizer qual de nós sente mais saudade do Brasil. Se o país se nos apresenta como a linha do horizonte, uma miragem fugidia, estamos os dois sempre muito longe dele onde quer que estejamos. É preciso aceitar que nos aconteceu essa coisa horrível de amar o Brasil, de ser patriota. "O que é o patriotismo senão o amor pelas coisas boas que comemos em nossa infância?" indagou-se certa vez Lin Yutang, ao que eu emendaria: será que amo mesmo o Brasil, meu amigo, ou apenas sinto a falta pungente de comer amendoim?
Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Tanto tempo perdido desgostando do Mario de Andrade pra terminar assim, patriota. Ao menos o Brasil é o único país do mundo que nos permite um patriotismo sem a vulgaridade da pátria. A terra, a temos exuberante, vastas vistas, grande e diversa o suficiente para que a extrapolemos à própria Terra. Talvez por as termos traçadas muito fartas e a muitos furtos, ignoramos a circunstância das fronteiras. Conjugamos a pátria não como locus, mas como habitus. A pátria como modo de vida, um código de conduta autoinfligido (ainda que sem muito rigor). O Brasil é uma pátria praticável, como os meus experimentos parisienses já muito bem demonstraram. Uma pátria espectral, trazida à nossa presença num ritual de conjuração com ingredientes banais, mas que dispostos na ordem correta operam o feitiço. Uma caixa de fósforos, uma moeda de cruzeiro novo, um disco de João, um pedaço de goiabada, et voilà! Brésil! Pátria fugaz, mas com a conveniência de caber na mala de mão. Onde haja alguém rindo e sofrendo simultânea e honestamente, tapeando um opressor e estapeando um oprimido, procurando um atalho de afeto e uma fresta pra gotejar desamor, ali há Brasil.
Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
Bem por isso é uma pátria é universal. Mátria de quem se quiser em seu seio. Uma pátria que se aprende, desde que praticada com afinco diário. Nós, que aprendemos na infância e dominamos esse jeito de ganhar dinheiro, comer e dormir como uma primeira natureza, quase a nível inconsciente, esquecemos o quanto outros podem se apoderar dela. Não falo dessa gente de pele branca, vermelha de sol, que toca pousadas no litoral. Não falo dos que escolhem o Brasil para morrer, mas dos que o escolhem para nascer como o parisiense Pierre Verger, oju-obá de Mãe Stella no Ilê Axé Opô Afonjá, que não só morreu em nossa Salvador, mas nela nasceu pelo Ifá e ganhou o nome de Fatumbi - o renascido. Li numa entrevista que Verger, quando tinha 30 anos, planejava suicidar-se aos 40. Não o fez por conta da leitura de A importância de Viver, do Lin Yutang - o mesmo do patriotismo palatal.
Que bom seria se Zweig também tivesse escolhido a Bahia para viver… Talvez fosse demovido do suicídio e entendesse que na lavagem do Bonfim, o diabo é a contraface de deus. Você dirá que trato Zweig com condescendência, mas me solidarizo com o homem porque vejo Paris com as mesmas lentes pelas quais ele um dia viu Salvador. As lentes do preconceito interessado:
E subitamente teve início na igreja uma atividade que parecia realizada por uma centena de diabos irrequietos. Uma tirava a vassoura da mão do outro, muitas vezes uma vassoura passava sucessivamente pelas mãos de três, quatro, dez indivíduos; outros que não tinham vassoura, ajoelhavam-se e esfregavam o piso com as mãos e todos gritavam: “viva o Senhor do Bonfim”, as crianças, com suas vozes finas e estridentes, as mulheres e os homens. Era um verdadeiro delírio, a mais violenta histeria coletiva que até hoje tive ocasião de observar. Uma jovem, certamente fora disso calma e circunspecta, desprendendo-se dos seus, ergueu os braços e, com o semblante de gozo e extático como o de uma bacante, começou a gritar “viva o Senhor do Bonfim, viva o Senhor do Bonfim”, até lhe faltar a voz. Outra que de tanto gritar e exaltar-se desmaiou foi carregada para fora da igreja, e os demônios loucos continuavam a esfregar e lavar como se os seus dedos tivessem que sangrar. Havia algo de tão violentamente arrebatador e contagioso nessa lavação cheia de gozo que não tive certeza de que, se me achasse no meio daqueles indivíduos exaltados, não agarrasse uma das vassouras. Foi verdadeiramente o primeiro acesso de loucura coletiva que vi e que ainda se tornou, mais inverossímil pelo fato de ocorrer numa igreja, sem uso de álcool, de estimulantes, sem música, e em pleno dia, sob um céu magnífico e radiante.
É um pouco triste que na nossa antiga confusão entre o que é a pátria e o que é o seu governo, acusaram Zweig de elogiar a ditadura Getulista com esse livro. Um erro similar ao que cometem esses falsos patriotas que se enrolam na bandeira, mas odeiam tudo no Brasil. Entoam o hino a plenos pulmões, mas não sabem cantar baixinho “Bahia com H”. Só acertaram mesmo no sequestro da camisa canarinho. Roubaram-na e nos acertaram bem no coração, camarada, usando o escudo da CBF como mira. “Não há mais Brasil”, você me escreveu, mas há ainda Brasileiros, meu amigo. Que triste desencontro: anos atrás, Auguste de Saint-Hilaire dizia haver um país com seu jovem imperador, o Brasil. Não havia, entretanto, brasileiros…
Não pense em mim como Taylor, camarada. Nem como Krikalev. Pensa em mim como Içá-Mirim, o Carijó filho do chefe Arosca, que em 1505 partiu do Brasil rumo a França no navio L’Espoir do capitão Gonneville com a promessa de retornar em vinte luas, versado nas artes do homem branco e no uso de armas de fogo. Naufragou no caminho, mas chegou vivo a Paris, onde virou Essomericq (est-ce homérique?). Foi um náufrago como Taylor. Como Krikalev, jamais retornou ao seu mundo. Foi um viajante no espaço e no tempo. Nasceu guarani em Pindorama, e morreu brasileiro em Paris. Nosso primeiro diplomata, cosmonauta, e descobridor da Europa. Içá-Mirim herdou de Gonneville, suas armas de família, fortuna e sobrenome. Casou-se com uma francesa parenta do capitão, com quem teve 14 filhos, e morreu aos 95 anos. Partira aos 15. Penso nesse homem com frequência, nesse Ulysses vermelho. Penso no momento em que enfim entendeu que era impossível retornar. O capitão, sem navio, não podia cumprir a promessa de retornar em vinte luas. Penso na vigésima primeira lua, rodeada de estranhas estrelas que só brilham no norte. Penso nas cantigas que aprendera criança lentamente sumindo da sua memória, e mesmo os rituais de conjuração da pátria de que ainda se lembrava, impossibilitados pela ausência de ingredientes tão banais. Bastava-lhe um pouco de farinha de mandioca. "Onde quer que esteja levo o Brasil comigo mas, ai de mim, não levo farinha de mandioca, sinto falta todos os dias, ao almoço e ao jantar." escreveu Jorge Amado em suas memórias. Essa saudade de Ítaca, meu amigo, dói no peito, dói no palato.
Gustave Caillebotte - Jeune homme à la fenêtre (1875)
Nossa, cara, você está escrevendo ainda melhor do que eu lembrava. Muito bom mesmo! E que alento são esses textos na esterilidade dos dias atuais. Já aguardo os próximos.